sábado, outubro 21, 2006

intenções. pois é.

Daniel Bayer

o sacristão.
foi uma ideia parva mas lá fui. era o homem mais velho lá da terra mas de memória fresca até para latim.

- o teu pai? está no cemitério grande parvo. isso é lá pergunta que se faça a um homem de bem?

de bem seria mas que se limpou à pressa demais quando lhe falei de algum amor da minha mãe lá no passado, também é verdade.

- vivo na sacristia e não é a mim que elas se confessam.

toma e cala essa boca - foi só o que eu consegui ouvir além de: filho-de-padre. que praga! estava a ficar obsecado. fui directo à igreja pior que toiro saído do curral.



Richard Avedon...

e em lugar do padre que eu sonhara, acobardado face à minha coragem, sai-me um tipo todo poderoso a benzer toda a gente e a olhar para mim. a medir-me. como quem diz - avança tu que eu espero mas pago para ver.

encostei-me à pia de água benta a congeminar na maneira de transformar o que sabia num blusão de cabedal. o preto. ou num emprego melhor com que o pagasse.

é que se ser filho-da-dita era já mau, sê-lo com o casaco velho era pior.

respirei fundo e avancei para a sacristia com a intenção absoluta de me ajoelhar quando ele entrasse e debitar tudo, em confissão.

essa intenção cumpri. um salto estava dado.

quinta-feira, outubro 19, 2006

culpa da Macieira.

três Macieiras como digestivo não se dissiparam com a subida do morro até a casa.
cantando aos berros contra as sombras da noite: - não tenho medo nem guardo segredo! - entrei em casa nem bem eu sei como.

Doug Gilbert

uma mulher que até aí parecia rezar, olhou-me com olhar aliviado.

afinal a velha era bonita ainda...

mesmo assim levou de supetão com a história do pai-padre, que eu trazia atravessada na garganta desde os tempos de jogar à bola pela rua.

- mas é verdade ou não? diga-me lá! eu tenho mais que o direito de saber!

entre graças a Deus que não te aconteceu nada, repetidos, oiço-a dizer quase no mesmo tom:

- tu agora tens é direito de ir para a cama e deixar-me descansar em paz. nasceste ou não nasceste? fui eu que te pari. isso garanto. dei-te a vida. explicações a bêbados nunca dei nem vou começar hoje. queres que te faça um chá para amanhã não estares agarrado à barriga?

assim. sem se ralar. um tudo por igual de impressionar um monje habituado a ladaínhas.

e eu de queixo caído. em frente dela que já tinha deixado de rezar há muito tempo e fervia água para a enfiar pela goela que teimara em se lhe abrir.

devo ter adormecido não sei onde mas acordei na cama.

não antes de sonhar ou não seria sonho? com um homem igualzinho ao padre da aldeia, a tentar a minha mãe como um belzebu chifrudo. a tentar. a tentar. até consegui-la. até conseguir- ME.

- filho de um corno!

o grito acordou-me. era o meu grito.

nada tinha terminado ainda.

apressei-me a beber o resto do chá que sobrara na chaleira. tinha chegado a hora de me confessar.

René Asmussen

terça-feira, outubro 17, 2006

não quero.

Dimitar Variysky

sou pobre mas não quero. é decisão. os pobres não se vêem ou apagam-se . confundem-se com a paisagem. com o musgo e o mofo de paredes e das árvores. até com o cinzento escuro da invernia.

o primeiro ordenado decidi que não ia dá-lo à minha mãe para gastar nas coisas que se comem.
fui à loja grande, a única que vende tudo, perto da minha aldeia e comprei uns ténis nike. deixei encomendado um blusão para o mês seguinte. tinha de encontrar um emprego melhor para o pagar. era preto e luzidio. cheirava a animal de raça.

andolini

almocei na pensão. a vista paga-se. tudo se paga neste mundo. tudo. comi bebi olhei a água a correr lá em baixo como se fosse um príncipe. paguei.

era príncipe que eu queria ser. mas não ali. noutro lugar. onde não me chamassem filho do padre. sem eu saber porquê. só por chamar. só para me obrigar a fazê-los engolir o insulto a murro.

foi nesse dia que decidi que tinha de saber de onde isso vinha. saltei dali para fora decidido a falar com o padre e a minha mãe.

havia que a calar por não levar dinheiro.


domingo, outubro 15, 2006

um salto

B Berenika

quando ouvi a voz da minha mãe dizer num tom quase de festa, inusitado nela: - aquela foi inteligente desta vez. saltou. - não entendi e saí para o trabalho depois de uma caneca de café.

para a minha mãe só o padre tinha nome. os outros eram aqueles e já está.

havia sons mais estridentes na montanha. gritos de aves. sacudidas fortes dos ramos das árvores mais altas. dei por isso.

na farmácia negaram-me o serviço preferido.

- ainda não sabes? ela subiu ao topo do casebre e atirou-se para o penhasco. foi por ali abaixo a rebolar.

tremi como uma palha ao vento.

as mãos dela vieram socorrer-me. mãos de cega a tatear-me todo até onde eu nem sabia existir.

soou um grito. meu. - ela atirou-se dali acima e manda-lhes saudades.

B Berenika

subi à casa dela. já não estava ninguém. apenas flores bravias a apontar para o topo. para onde ela tinha caído.

- na primavera vão florir.

sorri. tinha aprendido a palavra saltar.


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