sábado, outubro 28, 2006

primeira noite.

Volokin

não é ao acaso que aqueles casarões se dividem em andares. ainda que lá viva pouca gente, é urgente separá-la hierarquicamente.
a última palavra aprendi no barbeiro. num texto sobre a assembleia da república. mas adiante.

o meu quarto era maior que na aldeia mas num esconso. não fosse eu esquecer-me de quem era. tinha ao canto uma banheira só para mim.

pouco ou muito, subia na vida.

quanto a esquecer-me quem era não havia perigo. primeiro que tudo sou homem e enquanto arrumava a pouca tralha pessoal numa arca o quarto iluminou-se.

M Karez

não é força de expressão coisa nenhuma. quase tropecei num rosto de mulher que encandeava com o ohar, ao levantar-me daquela posição patética, dobrada, em que estava para não sujar as calças de fazenda.

gaguejei boa noite e ela a sorrir. nem piu. sorria e prometia qualquer coisa. a si mesma ou a mim?

não sabia nessa altura e não sei hoje ainda. mulher é bicho de muitos mistérios. mas uma coisa fiquei a saber pela noite fora: quem era eu.

homem não haja dúvida. e se frustrado por jantar na cozinha sem a ver, muio decidido a não continuar assim por muito tempo.


sexta-feira, outubro 27, 2006

o castelo. os ricos.

o que eu tive de andar desde o portão de grades para gigantes! terra a perder de vista.

ArminB

lá cheguei ao castelo. ainda dia, avistei o catavento. aquilo devia ser grande como o pintavam lá na terra. estava escondido no meio de árvores maiores ainda.
os pobres confundem-se com a paisagem, já o disse. os ricos não. acenam de longe aos seus. os cataventos das torres a girar. e escondem-se. dos pobres?

não tive muito tempo para pensar. já que tal como se escondem, expõem-se.

Steve Van Til

ainda nem avistava a porta de entrada e já outra mulher estirada, desmaiava no caminho, ao sol da tarde. tossi mas nem me olhou de facto. levantou as pestanas e desceu-as de novo.

os pensamentos que me assaltavam não são de se contar.

de homem, nem vulto. estaria eu no céu? ou no inferno?

a segunda pergunta surgiu-me quando um velho me deixou entrar e dei de caras com um quadro pregado na parede. foi o arrepio.

Volokin

se aquele ser ainda era vivo ou tinha deixado casta, estava frito. uma mulher vestida de bonita e, feia como um travesti de carnaval barato, emoldurada a ouro.

- quem é?

disse eu ao velho que acelerava à minha frente escada acima.

- é a senhora d. luisa , a patroa. a avó das meninas que aqui moram com ela e que são órfãs. herdarão tudo isto. pobre da fortuna!

ele preferia a velha. era de ver.

deixei de pensar nos ricos e decidi passar definitivamente a não dar atenção senão às ricas. toda a minha atenção.


quinta-feira, outubro 26, 2006

o segredo

o segredo não está no ruivo dos teus cabelos que perdi por distracção. (outros cabelos?).

o segredo era outro. eu não ia dizer que o padre era meu pai. simplesmente porque não podia. provas não tinha e isso não ia pagar-me o blusão de cabedal. um padre a ter filhos nunca foi notícia de relevo. já a não tê-los, sim.

Darren

o segredo era o padre ser homem capaz de milagres de vulto. coisa que o obrigava a ter vida a condizer. vida de santo. e o padre não queria. queria era a minha mãe.

ela deixou o banco para trás. ele o sino da igreja. eu deixei o pai-que-não-era-pai abandonado. como cristo foi na hora de morrer. sem uma flor na poça ou campa. tanto faz.


Rodney

atravessei a ponte com o cartão que me apresentava como gente capaz, aos donos do castelo. ricos. e recordem: rico era aquilo que eu tinha decidido ser.

as pontes no campo não vão dar à cidade. não faz mal. descobri isso dois dias depois de trabalhar por lá, tipo faz-tudo a gente de dinheiro.

o sexo na floresta é bem melhor que em cama de pensão. garanto eu.


Geoffroy Demarquet

gente esquisita. mas se é faz-tudo, fiz.

quase tropecei nela ao passar o portão. mas a certeza de que aquilo era pedaço a pedir mordam-me, tive-a mal a vi.

ah, o segredo? pois. disso falo no fim. se tiver tempo.


quarta-feira, outubro 25, 2006

a fuga.

Zbyszek Filipiak

fui para casa. vazio. não tinha pensado na hipótese da antecipação. nunca aprendi xadrez. por ali jogava-se dominó e damas. ainda assim só os velhos. os mais novos babavam-se em torno às raparigas, bebiam cerveja e iam ao cinema.

a certeza veio-me em casa quando vi o banco vazio frente à janela. ninguém costurava ou olhava o horizonte numa eterna espera.
senti-me como pode sentir-se (se sentisse), um boneco abandonado na rua pela criança que o carregara desde sempre.

Ewa Wijata

uma carta na mesa com a confirmação do que eu fingira só ter descoberto na noite da véspera.

querido filho. quis poupar-te a verdade mas fiz mal. a verdade é como álcool em ferida. arde mas desinfecta. devia tê-la usado.

sobre quem pensavas ser teu pai pouco tenho a dizer. morreu afogado. nada de glorioso. na última bebedeira tropeçou e afogou-se numa poça de água porque caiu de borco.

o teu verdadeiro pai deixa-te aí um cartão de apresentação para arranjares trabalho. tem direcção e tudo. é só apareceres lá.

quando baixar o pó que levantaste na igreja, digo-te aonde estou.

boa sorte!

beijos.

mãe.

e pronto. aí estava eu entregue ao mundo e órfão de padre e mãe.

o que me enfurecia era ir ela com um salto de avanço e eu ainda parado. ali.

chovia muito.

terça-feira, outubro 24, 2006

salto

graham ramsay

estende-me a mão. nada disto tem a ver contigo e os teus cabelos. sei demais. é passado. foi passado. qual é o tempo do verbo? devia ter estudado mais. ou não?
o que aprendi foi na vida e quase tudo naquele dia e nos meses seguintes até chegar a ti.
*
adormeci ali. ajoelhado não. doíam-me os joelhos. sentado num cadeirão com estofo. velho. mofoso. sonhei ou serei esquizofrénico (aprendi a palavra e o significado numa revista velha)?

David Barnes

sonhei um homem crucificado a nada por coisa nenhuma. ou por uma mulher.

sonhei uma mulher a parir em encarnado a volúpia da fé.

a maioria das mulheres precisam da fé para resistir à fragilidade infinita dos homens.

waltondesign

no sonho saltei (ou não seria sonho?) a autoria da minha própria vida. ser filho-de-padre era tão irreal como simplesmente ser. e sentia-me calmo. quase amado. afinal tanta gente não nasceu por razões semelhantes. eu estou vivo.

que grande superioridade isso me dá sobre os filhos abortados de outros padres!

devia ter um sorriso pateta colado à cara quando o sacristão me sacudiu e acordou.

- estás à espera de quem?

- do padre?

- esse não volta. faz-te à vida que eu vou fazer o mesmo. e desta é para a reforma. venha lá quem vier não aturo mais nenhum.

- e a minha mãe?

- sei lá! ele não foi sozinho mas se a que ia com ele era mãe de alguém, não é assunto meu.

esbateu-se-me o sorriso apalermado e levantei-me a custo. saí para a rua. estava frio e eu tinha fome. teria ainda mãe?


segunda-feira, outubro 23, 2006

a minha cabeça.

tive de atravessar a igreja. dei nas vistas mas nem dei por isso. a minha cabeça ia a galope. o corpo devagar. entre quase tudo velhas. escuríssimas velhas. feitas de igreja ou ela feita de velhas?

não queria saber. só imaginava a minha mãe a dançar com volúpia para um homem.

Dance Doug Gilbert

pior que isso. a dançar para um padre. um desgraçado condenado a ser com ou sem vocação, travesti toda a vida. e a só mudar de cor de vestido a dias certos.

que atraíra a minha mãe para aquele homem que nem roupa de homem poderia usar, no trabalho
sequer?


Michael Helms

seria a semelhança entre os dois? ou a competição? quem é mais feminino, tu ou eu? quem se despe com mais sensualidade? mais devagar? mais a pedir: agarra-me!

a minha cabeça estava imparável. a minha cabeça não queria um pai parecido com a mãe. e vai de rejeitá-lo.

mas se era mesmo ele tinha de dar-lhe uma oportunidade. afinal nem conhecera o outro. o que estava no cemitério.

o homem devia sofrer ao peso daquela tralha toda que despia e vestia. e tinha de fazer de santo. e tinha de ouvir misérias e pecados nojentos ou simplesmrente inventados para chamar a atenção.

dei em ter pena dele. nesse momento se me tivessem chamado filho-de-padre, não batia em ninguém.

cheguei à sacristia. ia tonto. só bebera chá desde a noite na vila. acomodei-me no confessionário para ganhar vez e por cansaço. as pernas já dobravam. tinha a cabeça aos saltos.

nem olhei para o lado.
mas devia.

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