sábado, outubro 28, 2006
primeira noite.
não é força de expressão coisa nenhuma. quase tropecei num rosto de mulher que encandeava com o ohar, ao levantar-me daquela posição patética, dobrada, em que estava para não sujar as calças de fazenda.
gaguejei boa noite e ela a sorrir. nem piu. sorria e prometia qualquer coisa. a si mesma ou a mim?
não sabia nessa altura e não sei hoje ainda. mulher é bicho de muitos mistérios. mas uma coisa fiquei a saber pela noite fora: quem era eu.
homem não haja dúvida. e se frustrado por jantar na cozinha sem a ver, muio decidido a não continuar assim por muito tempo.
sexta-feira, outubro 27, 2006
o castelo. os ricos.
não tive muito tempo para pensar. já que tal como se escondem, expõem-se.
os pensamentos que me assaltavam não são de se contar.
de homem, nem vulto. estaria eu no céu? ou no inferno?
a segunda pergunta surgiu-me quando um velho me deixou entrar e dei de caras com um quadro pregado na parede. foi o arrepio.
Volokin
se aquele ser ainda era vivo ou tinha deixado casta, estava frito. uma mulher vestida de bonita e, feia como um travesti de carnaval barato, emoldurada a ouro.
- quem é?
disse eu ao velho que acelerava à minha frente escada acima.
- é a senhora d. luisa , a patroa. a avó das meninas que aqui moram com ela e que são órfãs. herdarão tudo isto. pobre da fortuna!
ele preferia a velha. era de ver.
deixei de pensar nos ricos e decidi passar definitivamente a não dar atenção senão às ricas. toda a minha atenção.
quinta-feira, outubro 26, 2006
o segredo
o segredo era outro. eu não ia dizer que o padre era meu pai. simplesmente porque não podia. provas não tinha e isso não ia pagar-me o blusão de cabedal. um padre a ter filhos nunca foi notícia de relevo. já a não tê-los, sim.
Darren
o segredo era o padre ser homem capaz de milagres de vulto. coisa que o obrigava a ter vida a condizer. vida de santo. e o padre não queria. queria era a minha mãe.
ela deixou o banco para trás. ele o sino da igreja. eu deixei o pai-que-não-era-pai abandonado. como cristo foi na hora de morrer. sem uma flor na poça ou campa. tanto faz.
Rodney
atravessei a ponte com o cartão que me apresentava como gente capaz, aos donos do castelo. ricos. e recordem: rico era aquilo que eu tinha decidido ser.
as pontes no campo não vão dar à cidade. não faz mal. descobri isso dois dias depois de trabalhar por lá, tipo faz-tudo a gente de dinheiro.
o sexo na floresta é bem melhor que em cama de pensão. garanto eu.
Geoffroy Demarquet
gente esquisita. mas se é faz-tudo, fiz.
quase tropecei nela ao passar o portão. mas a certeza de que aquilo era pedaço a pedir mordam-me, tive-a mal a vi.
ah, o segredo? pois. disso falo no fim. se tiver tempo.
quarta-feira, outubro 25, 2006
a fuga.
a certeza veio-me em casa quando vi o banco vazio frente à janela. ninguém costurava ou olhava o horizonte numa eterna espera.
Ewa Wijata
uma carta na mesa com a confirmação do que eu fingira só ter descoberto na noite da véspera.
querido filho. quis poupar-te a verdade mas fiz mal. a verdade é como álcool em ferida. arde mas desinfecta. devia tê-la usado.
sobre quem pensavas ser teu pai pouco tenho a dizer. morreu afogado. nada de glorioso. na última bebedeira tropeçou e afogou-se numa poça de água porque caiu de borco.
o teu verdadeiro pai deixa-te aí um cartão de apresentação para arranjares trabalho. tem direcção e tudo. é só apareceres lá.
quando baixar o pó que levantaste na igreja, digo-te aonde estou.
boa sorte!
beijos.
mãe.
e pronto. aí estava eu entregue ao mundo e órfão de padre e mãe.
o que me enfurecia era ir ela com um salto de avanço e eu ainda parado. ali.
chovia muito.
terça-feira, outubro 24, 2006
salto
estende-me a mão. nada disto tem a ver contigo e os teus cabelos. sei demais. é passado. foi passado. qual é o tempo do verbo? devia ter estudado mais. ou não?
sonhei uma mulher a parir em encarnado a volúpia da fé.
a maioria das mulheres precisam da fé para resistir à fragilidade infinita dos homens.
waltondesignno sonho saltei (ou não seria sonho?) a autoria da minha própria vida. ser filho-de-padre era tão irreal como simplesmente ser. e sentia-me calmo. quase amado. afinal tanta gente não nasceu por razões semelhantes. eu estou vivo.
que grande superioridade isso me dá sobre os filhos abortados de outros padres!
devia ter um sorriso pateta colado à cara quando o sacristão me sacudiu e acordou.
- estás à espera de quem?
- do padre?
- esse não volta. faz-te à vida que eu vou fazer o mesmo. e desta é para a reforma. venha lá quem vier não aturo mais nenhum.
- e a minha mãe?
- sei lá! ele não foi sozinho mas se a que ia com ele era mãe de alguém, não é assunto meu.
esbateu-se-me o sorriso apalermado e levantei-me a custo. saí para a rua. estava frio e eu tinha fome. teria ainda mãe?